Historicamente a população brasileira sofre com a falta de médicos e outros profissionais de saúde em áreas remotas, periferias das grandes cidades, em municípios menores e áreas de maior violência. Olhares simplistas buscam respostas sem aprofundar o debate. Saem apontando deduções equivocadas aos borbotões. Há quem diga que devemos formar mais, diplomar em massa: outros apostam na importação, a exemplo do programa Mais Médicos.

Também existem defensores da tese de que o culpado seria o próprio profissional; em particular no tocante à medicina, temos diversos profetas do apocalipse pregando por aí que os médicos são meros mercenários, sem vocação, sem compromisso com o cuidado ao outro. Os doutores só pensariam em cifrões.



Lamentavelmente, até parte da imprensa ajuda a desviar o foco do problema para o surrealismo, mesmo que involuntária e inocentemente. Fato é que em pleno século XXI, com todos os avanços tecnológicos e graduando em velocidade exagerada, em especial médicos, o Brasil já deveria ter solucionado todas as questões da assistência. Se vivemos à beira do colapso, certamente a raiz é política e de gestão, mais exatamente de má gestão. 

Temos cerca de 450 mil médicos no País, média de um para 468 habitantes. Quer dizer, em termos médios, estamos acima de muitas nações do primeiro mundo. Atualmente funcionam no Brasil 298 faculdades de medicina e nossa população é de 201 milhões de habitantes. Os Estados Unidos têm 146 escolas médicas para 317 milhões de habitantes e a China 150 para 1,3 bilhão. 

Fica evidente que não nos faltam médicos, graduamos até demais. Porém, graduamos mal. Hoje, podemos afirmar é que a escassez é médicos bem formados, dentro dos princípios humanísticos. 

O Exame do Cremesp demonstra há quase uma década que ao menos metade dos recém-diplomados em medicina não possui capacitação suficiente. Já aqui, destaco a falta de vontade política de combater o lobby das escolas, que só enriquece meia dúzia de empresários e bem algum faz à população. 

Outro típico crime lesa-pátria: muitas prefeituras, após a criação do Mais Médicos, optaram por demitir os profissionais concursados, pois o Governo Federal arca com a remuneração dos intercambistas. Assim, trocam mão de obra minimamente segura por duvidosa. E se o “doutor” vem do exterior, o risco é maior ainda, já que não existe a obrigação de se submeter a uma prova para atestar qualificação ao exercício da medicina. 

Posso citar dezenas de outras mazelas da gestão pública responsáveis pela precariedade da assistência aos cidadãos. Mas destacarei somente mais algumas: os calotes de diversos municípios, a falta de estrutura e de equipes multidisciplinares, a inexistência de uma carreira de estado, aos moldes do judiciário, para atrair recursos humanos e fixá-los, além da violência.

Claro que nada do que citei é impossível de solucionar. Entretanto, digo sem medo de errar que permanecemos na era das trevas quando o assunto é visão pública e transformação de nosso País em exemplo de respeito ao povo, aos direitos fundamentais do homem. 

Enquanto não tivermos políticas de Estado, em vez de programas partidários, enquanto não contarmos com políticos que entendam o sentido da representação popular, em vez de usar cargos em causa própria, enquanto o dinheiro dos impostos não for investido para o bem coletivo, em vez de desviado à corrupção, muitas lendas e mentiras persistirão. Talvez até a lenda de que nos falta médicos. 


Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica 

*Artigo publicado no Diário do Grande ABC em 06/11/2017