Quando escolhemos ser médico, sabemos que teremos de estudar obstinadamente para passar no vestibular de uma boa universidade. Temos consciência de que dedicaremos anos e mais anos de nossas vidas à atualização científica, pois a ciência nos traz novidades a cada dia. 

Sabemos de igual forma que será preciso encarar doenças e a própria morte de frente sem dramatização, porém com humanismo, sem perder a ternura. Durante a formação e ainda no início de carreira, nutrimos fé quase inabalável na medicina. Encanta-nos e emociona-nos cuidar do outro, lidar com gente.

Essa é a essência de nossa arte. Ser médico requer esse tipo de sentimento: olhar carinhoso e dedicação humanística. Se tudo é assim tão especial, o que há faz do Brasil uma nação de sistema de saúde doente, políticas públicas em colapso clínico, profissionais depressivos e pacientes em crise crônica?



O Dia do Médico, a ser comemorado em 18 de outubro, é excelente momento para reflexão. A começar pelo cenário hostil no qual estamos inseridos. Na linha de frente da assistência, em particular na rede pública, as condições são inóspitas: urgências e emergências lotadas de cidadãos precisando de internações, de UTI etc. Enquanto pacientes sofrem com a falta de vagas, de acesso, de medicamentos, com questões estruturais e tantos outros problemas, profissionais são culpabilizados pela omissão do Estado. E sentem literalmente na carne o preço do descaso. Recente pesquisa com trabalhadores da saúde, no Estado de São Paulo, registra que 59,7% dos médicos e 54,7% dos enfermeiros sofreram, mais de uma vez, situações de violência em serviço.  Uma realidade que se aproxima de um filme de horror.

Diz a Constituição Federal que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Aprendemos e cremos que aqueles que precisam dos nossos cuidados não se diferenciam por gênero, classe social, nacionalidade ou religião. São aqueles “todos” que entendemos representados pela Lei maior do Brasil. 

É inquestionável, contudo, que o exercício da medicina em nosso País torna-se a cada instante mais desafiador, uma autêntica guerra de titãs. Ante a cegueira social de expressiva parcela da classe política e à total falta de compromisso com os direitos elementares, vícios antes só presentes no universo estatal são transportados de forma recorrente para o mundo privado. Na saúde suplementar, o equilíbrio de mercado/econômico é solapado por maus empresários que buscam lucro fácil subtraindo direitos de usuários e subremunerando prestadores de serviço, como os médicos. 

Diante desse conjunto de complicadores, o cotidiano parece conspirar contra aquilo que almejamos para nossas vidas como médicos.  Aqui, tomo para mim não a oportunidade de um testemunho, mas a licença para respirar fundo e compartilhar da experiência de décadas e décadas de cuidado aos meus pacientes, de entrega a meus alunos e de convicção em princípios. Sempre há um jeito de assistir, de atender bem, a despeito de todas as adversidades, por maiores que sejam. 

Aí está o nosso maior bem, não é a sabedoria inflada por teorias, mas a prática alicerçada no amor ao outro, na satisfação de cuidar na alegria de salvar vidas. Parabéns a todos os médicos.



Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica

*Artigo publicado no Diário do Grande ABC em 25/09/2017