Ser médico não é exatamente um sacerdócio, como sugerem alguns. Também não significa ser um super-herói, que supera absolutamente todas as adversidades impostas pelas faltas de políticas públicas consistentes, pelo descompromisso de certos governantes e pela incompetência administrativa. 

Até hoje, não vi médico algum de capa vermelha e ares de Clark Kent, a não ser em ONGs focadas em ofertar amor e qualidade de vida aos pacientes, como a Doutores da Alegria, às quais rendo aqui homenagem pública. 



Ser médico é algo simples, singelo. É um sentimento que acompanha o verdadeiro doutor desde sua infância: é gostar de gente, das relações humanas, olhar o outro com respeito e tratá-lo com amor, com dignidade. 

Esse médico, o médico de verdade, é regra entre nós, profissionais de medicina do Brasil. Sabe que paciente tem nome, história, família, uma construção de vida. Entende que ele não é um número de quarto ou de carteirinha de plano de saúde. 

Em geral, assim é o médico brasileiro; reverencia o paciente, pois gosta de pessoas, pois ama sua arte e ainda porque possui os pés nos chãos e quer o mesmo tratamento humano para si e os seus: ele tem consciência de que também o é paciente, e amanhã estará do outro lado. 

Daí surgem histórias de tocar o coração, como a do jovem doutor que ao relatar na web uma consulta a uma idosa com câncer, afirmou: “Ela que me curou”. Ou do médico aposentado no Espírito Santo, que se apresenta voluntariamente todas as semanas no hospital para tratar de uma paciente em coma há 17 anos. Ou ainda da equipe que salvou a vida de uma mulher e de seu bebê, após ruptura de útero. 

São centenas, milhares, centenas de milhares as histórias que poderíamos trazer para esse espaço, todas elas reais e boa parte registrada pela imprensa, para mostrar a beleza de nossa profissão e o quanto os médicos brasileiros são dignos de respeito. 

Aliás, não à toa, em recente pesquisa do DataFolha os médicos são apontados como profissionais mais confiáveis, com 26%, seguidos de professores (24%) e bombeiros (15%). 

Claro que enfrentamos problemas gigantes diariamente. A formação é cada vez pior em virtude da abertura indiscriminada de faculdades de medicina, o Sistema Único de Saúde é subfinanciado e está sucateado, fruto amargo da gestão ineficaz e da corrupção, não há leitos em muitos hospitais, faltam medicamentos, e, diga-se a verdade, alguns colegas não ajudam. Mais um: como em todas as profissões, temos, sim, algumas ovelhas negras entre nós.

Mas ser médico também significa superar obstáculos quase intransponíveis e dar o melhor para o bem do paciente, enquanto vai à luta para reverter as mazelas do cotidiano. E elas não são poucas. 

Dias atrás, em nota pública, a Associação Paulista de Medicina (APM) bem registrou: “O profissional de medicina dedica anos de sua vida e considerável investimento à formação profissional, já sabendo que seu ofício terá percalços de todos os gêneros. Mesmo assim, segue em frente por acreditar no Juramento de Hipócrates; o faz por gostar de gente e valorizar o bem estar do próximo. Quando vai para a linha de frente do atendimento, principalmente na rede pública, conhece de antemão as adversidades. Mas se apresenta porque deseja servir, da melhor forma possível, aqueles que necessitam de assistência em saúde.”

Esse é o médico brasileiro, um profissional que muito tem a ensinar a políticas que só fazem fingir que trabalham. 

Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica

* Artigo publicado na Revista da APM - Edição 691 - agosto 2017