É evidente o avanço da tecnologia na área médica, assim como o entusiasmo pelos aparatos tecnológicos e a exaltação de uma ciência sem fronteiras. Em contrapartida, essa demanda gera a necessidade de resgatarmos nos estudantes e residentes de medicina o conceito da humanização, do médico de família e da cidadania. O aprimoramento do conhecimento técnico é sem dúvida algo essencial à prática diária da profissão, mas em circunstância alguma substitui o humanismo e a relação médico-paciente. Lutamos, portanto, pelo respeito e valorização do doente, que é mais importante do que a doença que o acomete. Queremos que todos os pacientes sejam conhecidos pelo seu nome e não apenas pelo número do leito que ocupam. Vislumbramos uma relação médico-paciente mais humanizada e menos pragmática.
Em relação à cidadania, vale mais a prática do que a teoria. Cito como bom exemplo o Programa de Saúde da Família Fluvial, desenvolvido hoje na Escola Paulista de Medicina. Com apoio da Marinha e demais forças armadas, mandaremos a regiões remotas da Amazônia grupos de residentes, acompanhados de preceptores devidamente qualificados, para atender à população ribeirinha. Os primeiros grupos devem partir já nos próximos meses.
Com a implantação do PSF Fluvial a expectativa é ampliar o serviço de atendimento médico prestado pela Marinha na região, a fim de levar tratamento de qualidade e acesso regular aos serviços de saúde. Uma ação que, em conjunto com o Programa Saúde em Fronteira, será de extrema importância para as comunidades locais, carentes de atuação médica mais enfática no que concerne à prevenção do câncer, estabelecimento do perfil epidemiológico local e desenvolvimento de pesquisas compromissadas com o bem estar da população. Encontra-se também no PSF Fluvial o projeto de implantação de uma soroteca que será fundamental para o estudo de novas vacinas e medidas profiláticas de grande eficácia. Os residentes que participarem desses programas viverão uma verdadeira experiência de cidadania que trará instrumentos para que eles compreendam que praticar medicina é muito mais do que atender pacientes em um consultório na Avenida Paulista.
Inúmeras tentativas foram gestadas pelas esferas governamentais para tentar fixar profissionais nessas localidades. Contudo, a falta de estrutura, a inexistência de programas de desenvolvimento profissional e a distância dos grandes centros são aspectos que desmotivam. Nem os altos salários atraem os médicos. Foi por isso que na EPM/Unifesp criamos o Programa Saúde em Fronteira, em associação com o PSF Fluvial. Juntos, eles possuem todos os pré-requisitos para se transformarem em políticas de governo. Ações que verdadeiramente se definem como Saúde Global (Global Health), ou seja, buscam reduzir as disparidades por meio do investimento nos diversos indicadores sociais, além de envolverem sensibilização e visão integral do ser humano.
Esses projetos já receberam importantes elogios, inclusive apoio de outros países. Já foi estabelecida parceria com a Duke University (EUA) e com o Hospital do Câncer de Barretos. Com isso, queremos quebrar barreiras para enxergar novos caminhos. Como diz Jean-Jacques Rousseau, uma sociedade só é democrática quando ninguém é tão rico que possa comprar alguém e ninguém é tão pobre que tenha de se vender a alguém.
Antonio Carlos Lopes é presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica