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17_Abscessos_RBCM_v10_n1

Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2012 jan-fev;10(1):83-6

Abscessos hepáticos secundários a espinha de peixe. Relato de caso*

 

Liver abscess secondary to a fishbone. Case report

 

Cinthya Coelho Borba1, Amanda Raquel da Silva Gomes1, Joana Paula Pantoja Serrão Filgueira1, Otávio Gomes Paz2

 

*Recebido do Hospital Ophir Loyola (HOL). Belém, PA.

RESUMO

 

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: O objetivo deste estudo foi relatar e discutir a experiência clínica de uma doença comum, porém de etiologia pouco frequente com risco de óbito na falta do diagnóstico precoce.

RELATO DO CASO: Paciente do sexo feminino, 25 anos, foi admitida no hospital com dor abdominal, febre e calafrios. O exame físico revelou anemia e dor epigástrica. Os dados do laboratório mostraram leucocitose e função hepática alterada. A tomografia computadorizada (TC) de abdômen revelou abscessos no lobo direito e esquerdo do fígado. A laparotomia exploratória foi realizada e uma espinha de peixe de 2,8 cm de comprimento foi encontrada perfurando o duodeno e penetrando no lóbulo esquerdo do fígado formando um abscesso hepático. A drenagem do abscesso hepático com remoção da espinha de peixe e fechamento simples da perfuração foi realizada. A paciente evoluiu bem e recebeu alta hospitalar.

CONCLUSÃO: O diagnóstico de abscesso hepático secundário à perfuração do trato gastrintestinal por um corpo estranho é de difícil reconhecimento uma vez que há uma variedade de sintomas inespecíficos e porque os pacientes muitas vezes desconhecem a ingestão. Mesmo assim, na presença de abscessos hepáticos, a etiologia deve ser insistentemente investigada, principalmente quando não responde à terapia inicial. A presença de um corpo estranho deve ser lembrada como possível causa de um abscesso hepático, mesmo que raro, para evitar que se protele o tratamento adequado.

Descritores: Abscesso hepático, Corpo estranho, Sepse.

 

SUMMARY

 

BACKGROUND AND OBJECTIVES: The aim of this study was to discuss the clinical experience of a common disease of infrequent etiology whereas death can occur without early diagnosis.

CASE REPORT: Female patient, 25 years-old, was admitted with abdominal pain, fever and chills. Physical examination revealed anemia and epigastric pain. Laboratory data showed leukocytosis and abnormal liver function. Computed tomography (CT) of abdomen showed abscesses in the right and left lobe of the liver. Exploratory laparotomy was performed and a fish bone 2.8 cm in length was found perforating the duodenum and penetrating into the left lobe of the liver forming a liver abscess. The drainage of liver abscess with removal of fish bones and simple closure of perforation was performed. The patient recovered well and was discharged.

CONCLUSION: The diagnosis of liver abscess secondary to perforation of the gastrointestinal tract by a foreign body is difficult to recognize since there are a variety of nonspecific symptoms and because patients often unaware of ingestion. Still, in the presence of liver abscess, etiology should be investigated urgently, particularly when not responding to initial therapy. The presence of a foreign body should be remembered as a possible cause of liver abscess, even though rare, to avoid delays the proper treatment.

Keywords: Foreign-body migration, Hepatic abscess, Sepsis.

 

INTRODUÇÃO

 

O abscesso hepático piogênico é uma condição rara associado à elevado índice de gravidade, sendo responsável por cerca de 1% das internações hospitalares1,2.

Nas últimas décadas, os avanços nos meios diagnóstico e o aparecimento de novas alternativas de tratamento possibilitaram maiores percentuais de cura. No entanto, apesar de tais progressos o abscesso hepático piogênico continua representando um grande desafio diagnóstico e terapêutico3.

Recentemente assistiu-se a uma mudança na epidemiologia desta entidade patológica. Dentre os fatores associados, o abscesso hepático causado por corpo estranho é uma condição ainda mais rara e cujo desfecho é geralmente fatal devido as dificuldades em se estabelecer o diagnóstico precoce4.

Esta associação incomum somente foi relatada na literatura em cerca de 59 casos5.

A dificuldade na suspeita diagnóstica e a inespecificidade dos sintomas são fatores que levam ao diagnóstico tardio e consequentemente ao elevado numero de óbitos nestes casos.

O objetivo deste estudo foi relatar um caso de abscesso hepático secundário à ingestão de corpo estranho.

 

RELATO DO CASO

 

Paciente do sexo feminino, 25 anos, solteira, comerciante de açaí, natural e residente em Belém, procedente do Hospital Pronto-Socorro Municipal. Admitida no serviço de Clinica Médica do Hospital Ofir Loyola, apresentando havia 20 dias dor epigástrica contínua, de forte intensidade e sem fatores de piora ou melhora, associada à febre alta, diária, intermitente e acompanhada de calafrios, além de vômitos pós-prandiais. Desde o início dos sintomas procurou atendimento hospitalar em serviços de pronto-atendimento por várias vezes, recebendo medicações sintomáticas.

Ao exame físico a paciente apresentava-se em regular estado geral, consciente e orientada no tempo e no espaço, afebril ao toque, acianótica, icterícia conjuntival (+/4+), hipocorada (++/4+), eupneica, ausência de edema ou gânglios palpáveis. Ausculta cardíaca sem alterações e ausculta pulmonar apresentando murmúrio vesicular reduzido em base pulmonar direita. O abdômen era globoso, flácido, doloroso a palpação do epigástrio e hipocôndrio direito, fígado aumentado (3 cm) do rebordo costal direito, com sinal de Torres-Homem presente.

Na admissão foram solicitados exames laboratoriais (Tabela 1) e tomografia computadorizada de abdômen (Figura 1) que evidenciou imagem sugestiva de abscessos no fígado de localização central e pericapsular.

Iniciado tratamento clínico com ceftriaxona (2 g/dia) e metronidazol (1500 mg/dia) e solicitada a drenagem guiada por ultrassonografia (USG) dos abscessos. Após 72 horas de antibioticoterapia, a paciente não apresentava melhora clínica, apresentando piora da dor abdominal e permanência do quadro febril. Durante a internação hospitalar evoluiu, ainda, com hipotermia (Tax = 35,8° C), taquicardia, dispneia, acidose metabólica e leucocitose (19.000/mm3), sendo encaminhada para a unidade de terapia intensiva (UTI) e realizada drenagem percutânea do abscesso.

A paciente foi submetida à drenagem percutânea guiada por USG, com saída de 300 mL de conteúdo purulento e sanguinolento de abscesso que envolvia o lobo esquerdo do fígado interposto com o estômago e aparentemente vinculado a retrocavidade dos epíplos. No momento da drenagem a paciente referiu que o odor da coleção era sentido também quando se alimentava ou quando comprimiam o seu estômago.

As relações anatômicas da lesão são o lobo esquerdo do fígado, estômago, retrocavidade e cava pancreática. Avaliação cirúrgica considerou quadro de sepse por abscesso amebiano e optou por conduta conservadora.

Após o procedimento, na UTI, manteve-se séptica com sinais vitais estáveis, taquidispneica com suporte de oxigênio.

Recebeu alta da UTI após três dias em bom estado geral, mas mantendo ainda anemia e febre diária com calafrios. De volta a enfermaria foi avaliada pela equipe de cirurgia que manteve conduta conservadora e avaliação da radiologia que solicitou nova USG. No quarto dia após o retorno para a enfermaria, a paciente realizou USG de controle com evidencias de que as coleções hepáticas havia se restabelecido. Foi realizada nova drenagem percutânea de abscesso hepático do lobo direito com saída de material purulento e do abscesso em lobo esquerdo com saída de material achocolatado e colocação de dreno no local. Após o procedimento foi realizado TC de abdômen, e após revisão dos exames foi encontrado imagem sugestiva de corpo estranho (Figura 2). A paciente realizou, ainda, EDA que mostrou pangastrite enantematosa grau leve e lesão vegetante na segunda porção do duodeno. Realizada biopsia da lesão.

Diante dos achados, a paciente foi submetida à laparotomia exploradora cujos achados mostraram presença de fibrina em lobo hepático direito (segmento VI), ausência de coleções visíveis em fígado. Aderências e bloqueio do epíplon em topografia de duodeno. Encontrado corpo estranho com características de espinha de peixe em pertúito de piloro (Figuras 3, 4 e 5). Foi realizada biopsia de úlcera em piloro, ulcerorrafia e drenagem da cavidade com retirada de corpo estranho.

A paciente foi encaminhada para a UTI e após dois dias retornou para enfermaria afebril e em bom estado geral. Recebeu alta com estabilidade clínica no oitavo dia de pós-operatório.

 

DISCUSSÃO

 

O diagnóstico de abscesso hepático secundário à perfuração do trato gastrintestinal foi descrito pela primeira vez em 1898 e desde então, essa associação tem sido cada vez mais reconhecida. No entanto, o grau de suspeição por parte dos profissionais de saúde ainda é baixo, uma vez que os pacientes, muitas vezes, desconhecem a ingestão do corpo estranho e a sintomatologia é variada e inespecífica, assemelhando-se aos mais variados quadros dolorosos do abdômem, tais como abscesso nefrético, abscesso subfrênico, colecistite aguda, apendicite aguda, colangite, pleurite, abscesso de pulmão e doenças infecciosas graves gerais.

A maioria dos corpos estranhos ingeridos atravessam o trato gastrintestinal sem intercorrências no prazo de uma semana. A incidência de corpos estranhos perfurando o intestino é menor que 1%, sendo os objetos pontiagudos ou cortantes na maioria dos casos. Os exemplares mais comuns incluem palitos, agulhas, placas dentárias, ossos de peixes e ossos de galinha3.

Embora o local de penetração no trato gastrintestinal nem sempre possa ser identificado, os locais mais comuns de perfuração são o estômago e o duodeno. Por razões ainda desconhecidas, habitualmente o corpo estranho tende a se alojar no lóbulo esquerdo do fígado3.

A apresentação clínica consiste em dor abdominal epigástrica como sintoma mais comum, seguido de febre, calafrios, anorexia, perda de peso e fadiga. A duração dos sintomas vão de um dia a um ano (em média 39 dias). O laboratório raramente é normal e apresenta leucocitose em 79% dos casos. Para o diagnóstico de imagem devem ser utilizados USG, TC e endoscopia1.

Relatos evidenciam que o corpo estranho fora observado em exame diagnóstico como a TC, porém foram erroneamente interpretadas como um clipe de ‘’cirurgia’’ ou ‘’artefato’’1, fato que ocorrera no caso descrito em que desde a primeira TC já havia imagem sugestiva de corpo estranho mas fora considerado como artefato e só após a falha de tratamento com revisão do caso fora considerado a possibilidade de se tratar de um corpo estranho.

Os abcessos piogênicos tratam-se em geral de infecções polimicrobianas, e os agentes mais frequentes são de origem entérica. Recentes publicações indicam que 50% a 70% dos abcessos hepáticos piogêncos contem Gram-negativos e 40% a 50% anaeróbios.

A aspiração diagnóstica guiada por USG ou TC deve ser realizada antes do início da antibioticoterapia. Abscessos hepáticos piogênicos podem ser tratados efetivamente com antibióticos sistêmicos, geralmente associados a outros métodos. Quando a cultura do aspirado está disponível, o antibiótico de escolha pode ser escolhido levando-se em consideração a sensibilidade do agente. Uma vez que o crescimento em culturas pode levar vários dias, é aconselhável o tratamento empírico até então. A duração do tratamento é por via venosa por pelo menos 10 a 14 dias. A duração total do tratamento pode ser guiada por métodos de imagem.

Quando não ocorre resposta clinica à antibioticoterapia ou nos casos refratários à drenagem guidada por método de imagem, deve-se suspeitar da presença de um corpo estranho. O tratamento recomendado é laparotomia exploradora para drenagem do abscesso hepático e retirada de corpo estranho5. Estes casos são potencialmente reversíveis quando feito o diagnóstico precoce e após a retirada cirúrgica da causa costumam responder bem ao tratamento clínico.

 

CONCLUSÃO

 

O diagnóstico de abscesso hepático secundário a perfuração do trato gastrintestinal por um corpo estranho é de difícil reconhecimento uma vez que há uma variedade de sintomas inespecíficos e porque os pacientes muitas vezes desconhecem a ingestão. Em um abscesso hepático que não responde à aspiração e antibioticoterapia deve-se procurar outra etiologia. Apesar da sua raridade deve-se considerar um corpo estranho e procurar ativamente sinais radiográficos que visualizem o objeto ou mesmo encaminhar para cirurgia diagnóstica e terapêutica.

 

Referências

 

1. Frey CF, Zhu Y, Suzuki M, et al. Liver abscesses. Surg Clin North Am 1989;69(2):259-71.

2. Mcdonald MI, Corey GR, Gallis HA, et al. Single and multiple pyogenic liver abscesses. Natural history, diagnosis and treatment, with emphasis on percutaneous drainage. Medicine 1984;63(5):291-302.

3. Ferreira S, Barros R, Santos MA, et al. Abscesso hepático piogénico - casuística de 19 anos. J Port Gastrenter 2007;14(3):128-33.

4. Theodoropoulou A, Roussomoustakaki M, Michalodimitrakis MN, et al. Fatal hepatic abscess caused by a fish bone. Lancet 2002;359(9310):977.

5. Leggieri N, Marques-Vidal P, Cerwenka H, et al. Migrated foreign body liver abscess illustrative case report, systematic review, and proposed diagnostic algorithm. Medicine 2010;89(2):85-95.

6. Kumar S, Gupta NM. Foreign bodies migrating from gut to liver. Indian J Gastroenterol 2000;19(1):42.

7. Chintamani Singhal V, Lubhana P, Durkhere R, et al. Liver abscess secondary to a broken needle migration--a case report. BMC Surgery 2003;3:8.

8. Byard RW, Gilbert JD. Hepatic abscess formation and unexpected death: a delayed complication of occult intraabdominal foreign body. Am J Forensic Med Pathol 2001;22(1):88-91.

9. Santos SA, Alberto SC, Cruz E, et al. Hepatic abscess induced by foreign body: case report and literature review. World J Gastroenterol 2007;13(9):1466-70.

10. Marcoleta FBM. Absceso hepático: Enfrentamiento diagnóstico y terapêutico. Gastroenterol Latino Am 2010;21(2):309-13.

1. Médica Residente em Clínica Médica do Hospital Ophir Loylola (HOL). Belém, PA, Brasil

2. Médico Especialista em Reumatologista e Clínica Médica, Preceptor do Serviço de Clínica Médica do Hospital Ophir Loyola (HOL). Belém, PA, Brasil

 

Apresentado em 15 de março de 2011

Aceito para publicação em 21 de dezembro de 2011

 

Endereço para correspondência:

Dr. Otávio Augusto Gomes da Paz

Travessa Timbó 899/604 – Bairro Marco

66087-187 Belém, PA.

Fone: (91) 82215100

E-mail: otaviogomespaz@yahoo.com.br

 

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RELATO DE CASO

Tabela 1 – Exames admissionais

Hemoglobina

6,2 g/dL

Hematócrito

19,2 %

VCM

60,75 u3

HCM

19,62 yy

RDW

17,6%

Leucócitos

11.300/mm3

Neutrófilos

78%

Bastão

12%

Plaquetas

350000/mm3

Ureia

19 mg/dL

Creatinina

0,7 mg/dL

Bilirrubina T

1,3 mg/dL

Albumina

1.8 g/dL

AST

92 U/L

ALT

95 U/L

TP

15,8 segundos

AP

62,10%

INR

1,24 segundos

VCM = volume corpuscular médio; HCM = hemoglobina corpuscular média; RDW = red cell distribution width; AST = aspartato aminotransferase; ALT = alanina aminotransferase; TP = tempo de protrombina; TAP = tempo de ativação de protrombina; INR = International Normalized Ratio

Abscessos1.jpg 

Figura 1 – Tomografia de abdômen evidenciando múltiplos abscessos no fígado (central e pericapsular).

Abscessos2.jpg 

Figura 2 – Tomografia de abdômen evidenciando a presença de corpo estranho (seta).

Abscessos3.jpg 

Figura 3 – Localização do corpo estranho durante o intraoperatório.

Abscessos4.jpg 

Figura 4 – Úlcera duodenal

Abscessos5.jpg 

Figura 5 – Corpo estranho (espinha de peixe).


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