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16_Amiloidose_RBCM_v10_n1

Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2012 jan-fev;10(1):80-2

Amiloidose renal secundária ao mieloma múltiplo. Relato de caso*

 

Renal amyloidosis caused by multiple myeloma. Case report

 

Luis Alberto Batista Peres1, Elizamara Eliege Segala2, Fabrício Eduardo Adriano2, Flávio Padilha2, Francisco Yokoyama2, Guilherme Minikowski2, Carlos Floriano de Moraes3

 

*Recebido da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Cascavel, PR.

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: O mieloma múltiplo (MM) é uma neoplasia maligna grave da medula óssea que ocorre principalmente em pessoas idosas, ocasionalmente complicado por amiloidose. O objetivo deste estudo foi relatar um caso de mieloma múltiplo com amiloidose renal.

RELATO DO CASO: Paciente do sexo feminino, 58 anos, apresentou edema, proteinúria (1,5 g/dia), dor lombar e disfunção renal (creatinina sérica de 3,5 mg/dL, depuração de creatinina de 23,4 mL/min/1,73m2), hipercalcemia (cálcio = 10,7 mg/dL), anemia (hemoglobina = 6,7 g/dL), pesquisa de proteínas urinárias de Bence Jones positiva. Radiografias revelaram lesões líticas ósseas. A biópsia renal evidenciou depósitos hialinos (amiloide) no interstício renal e nos glomérulos. Análise de aspirado de medula óssea mostrou proliferação clonal de plasmócitos. Tratada com nifedipina (40 mg/dia), furosemida (40 mg/dia), eritropoetina (8.000 U/semana), ácido fólico (5 mg/dia), carbonato de cálcio (1,5 g/dia), quimioterapia (prednisolona, melfalan, dexametasona, talidomida, vincristina, doxorrubicina) e radioterapia localizada. A evolução mostrou regressão do edema, a função renal ficou estável e ocorreu remissão dos sintomas clínicos durante oito anos.

CONCLUSÃO: Relatou-se um caso de mieloma múltiplo complicado com amiloidose. Aspectos sobre o diagnóstico e o tratamento foram revisados.

Descritores: Amiloidose renal, Mieloma múltiplo.

 

SUMMARY

 

BACKGROUND AND OBJECTIVES: Multiple myeloma (MM) is a serious malignant neoplasm of bone marrow, and mostly occurs in the elderly persons. It is occasionally complicated by amyloidosis. The objective of this study was report a case of multiple myeloma with amyloidosis.

CASE REPORT: Female patient, 58 year-old, had edema, proteinuria (1.5 g/day), lumbar pain and renal dysfunction (at admission her renal function was noticed to be abnormal, serum creatinine of 3.5 mg/dl; creatinine clearance of 23.4 ml/min/1.73m2), hypercalcemia (calcium= 10.7 mg/dL), anemia (hemoglobin level 6.7 g/dL), urinary Bence Jones protein positive. Skeletal radiographs revealed lytic lesions. Renal biopsy revealed hyaline deposits (amyloid) in the renal interstitium and the glomeruli. Bone marrow aspirate analysis revealed clonal plasma cells. Treated by nifedipine (40 mg/day), furosemide (40 mg/day), erythropoietin (8,000 U/week), folic acid (5 mg/day), calcium carbonate (1.5 g/day), chemotherapy (prednisolone, melphalan, dexametasona, vincristine, thalidomide, doxorubicin) and located radiotherapy. Follow-up showed regression of edema, stable renal function and remission of clinical symptoms during eight years.

CONCLUSION: We report a case of multiple myeloma complicated by amyloidosis. Features about the diagnosis and treatment were revised.

Keywords: Multiple myeloma, Renal amyloidosis.

 

INTRODUÇÃO

 

Mieloma múltiplo (MM) é uma malignidade que se desenvolve na medula óssea, devido ao crescimento descontrolado de células plasmáticas. Acomete mais comumente indivíduos idosos. O MM é caracterizado por múltiplas lesões líticas (ósseas) e/ou proliferação difusa de células plasmáticas na medula óssea. A apresentação clínica tipicamente inclui dor óssea, fraqueza, anemia, doença renal e hipercalcemia, dentre outras1. O diagnóstico pode ser incidental ou feito por eletroforese de proteínas no sangue e/ou urina, sendo confirmado pelo aspirado de medula óssea. Radiologicamente pode-se observar lesões líticas, fraturas vertebrais e osteoporose. O tratamento é feito com quimioterapia (melfalan, prednisolona, dexametasona, vincristina, doxorubicina), podendo ser realizado o transplante de medula óssea autólogo2.

Amiloidose é uma doença sistêmica causada pela superprodução de imunoglobulinas monoclonais de cadeia leve que podem depositar-se nos diversos tecidos e órgãos culminando com comprometimento sistêmico. A amiloidose é a complicação que pode ocorrer em 5% a 10% dos pacientes portadores de MM. Essa complicação pode envolver o tecido cardíaco, rins, nervos, dentre outros. Pode cursar com insuficiência renal, acometendo até 40% dos pacientes3,4.

O objetivo deste estudo foi relatar um caso de mieloma múltiplo com amiloidose renal.

 

RELATO DO CASO

 

Paciente do sexo feminino, 58 anos, procurou o Ambulatório de Nefrologia do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (UNIOESTE), com história de dor lombar, edema, fraqueza, palidez, hipertensão arterial e dispneia aos médios esforços. Antecedente de infecção urinária de repetição. Ao exame físico apresentava-se consciente, lúcida, hipocorada (2+/4+), eupneica, afebril, pressão arterial de 160 x 100 mmHg, frequência cardíaca de 88 bpm, ausculta cardiopulmonar normal, abdômen sem visceromegalias ou massas palpáveis, edema de membros inferiores (2+/4+). Exames laboratoriais revelaram creatinina = 3,5 mg/dL, hemograma com 4.900 leucócitos, hemoglobina de 6,7 g/dL e hematócrito de 20,7%, cálcio = 13,2 mg/dL, eletroforese de proteínas normal, proteinúria de Bence-Jones positiva, parcial de urina revelou proteínas (2+) e proteinúria de 24 horas de 1.700 mg. Submetida à biópsia renal percutânea que mostrou glomeruloesclerose nodular difusa e coloração com vermelho Congo confirmando amiloidose renal. Biópsia da medula óssea com plasmocitose. Tratada com prednisona, melfalan, bifosfonato, nifedipina, furosemida, citoneurin, carbonato de cálcio, ácido fólico e eritropoetina. Por persistência do quadro álgico ósseo iniciou quimioterapia de segunda linha com vincristina, talidomida, doxorrubicina e dexametasona e posteriormente radioterapia localizada. Evoluiu com melhora dos sintomas, controle da pressão arterial e do edema e função renal estável após oito anos de seguimento. Biópsia de medula óssea de controle normal.

 

DISCUSSÃO

 

O MM é uma desordem neoplásica caracterizada por proliferação na medula óssea de um clone de células plasmáticas derivadas das células B, com invasão subsequente do osso adjacente e de múltiplos órgãos. Há excessiva produção de proteína monoclonal M que pode causar hiperviscosidade e insuficiência renal1. É a mais comum malignidade óssea primária2.

A apresentação clínica vai depender dos órgãos envolvidos. Fraturas e dores ósseas são comuns devido às lesões líticas múltiplas. Pode ocorrer compressão vertebral e síndrome do túnel do carpo5. Hipercalcemia é frequente e pode cursar com anorexia, náuseas, sonolência e polidpsia. Anemia pode causar fraqueza e mal estar. Raramente pode ocorrer perda de peso e febre6. Outras apresentações incluem insuficiência renal, mononeurite múltipla, hematúria, dentre outras7-9. No caso em questão os principais sintomas foram: dor lombar, edema, fraqueza, palidez, hipertensão arterial e dispneia aos médios esforços, insuficiência renal, anemia, proteinúria, hipercalcemia e proteinúria de Bence-Jones positiva. A biópsia renal revelou lesões glomerulares e intersticiais típicas com depósito de amiloide e o aspirado medular evidenciou plasmocitose.

Estes sintomas ocorreram devido à anemia importante e comprometimento da função renal.

Os critérios diagnósticos envolvem níveis elevados de proteína M no sangue e urina, infiltração de células plasmáticas na medula óssea, sintomas sistêmicos como fraqueza, dor óssea, proteinúria, anemia, envolvimento renal, infecções recorrentes, neuropatia periférica. Eletroforese de proteínas séricas e urinárias pode mostrar proliferação clonal de cadeias leves. Aspirado de medula óssea pode evidenciar plasmocitose10-12. Dependendo da definição de insuficiência renal, esta complicação é relatada em 15% a 40% dos pacientes com MM. Quando do diagnóstico 30% a 40% dos pacientes com MM tem níveis de creatinina elevados. A fisiopatologia da insuficiência renal no MM envolve depósitos de cadeias leves monoclonais nos rins, desidratação, hipercalcemia, hiperuricemia, uso de drogas nefrotóxicas, dentre outros fatores4. No manuseio desta complicação é importante o tratamento suportivo, com adequada hidratação, alcalinização urinária e manejo da hipercalcemia. Nos casos de insuficiência renal avançada a terapia dialítica pode ser requerida, podendo ocorrer recuperação da função renal nos primeiros meses de tratamento13.

O resultado do tratamento de pacientes com MM com quimioterapia convencional com ou sem o transplante de células-tronco não tem sido satisfatório, com sobrevida variando de dois a seis anos, dependendo da idade do paciente. Nos últimos anos novos fármacos têm sido adicionados ao arsenal terapêutico antimieloma como a talidomida, lenalidomida, bortezomibe, panobinostate, dentre outros14-17. Nos próximos anos espera-se a consolidação de novos esquemas que certamente aumentarão a sobrevida destes pacientes. A paciente do presente caso foi tratada inicialmente com corticoide e quimioterapia de primeira linha e posteriormente quimioterapia de segunda linha (vincristina, talidomida, doxorrubicina e dexametasona) e radioterapia localizada, apresentando uma sobrevida até o momento de oito anos. Acredita-se que houve uma sobrevida satisfatória devido à faixa etária no momento do diagnóstico.

 

REFERÊNCIAS

 

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5. Smith A. Wisloff F. Samson D. Guidelines on the diagnosis and management of multiple myeloma 2005. Br J Haematol 2006;132(4):410-51.

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1. Professor Adjunto da Disciplina de Nefrologia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Cascavel, PR, Brasil

2. Acadêmicos do Curso de Medicina da Universidade Estadual do Oeste do Paraná- (UNIOESTE). Cascavel, PR, Brasil

3. Professor Adjunto de Patologia da Faculdade Assis Gurgacz e Patologista do Laboratório APC. Cascavel, PR, Brasil

 

Apresentado em 18 de janeiro de 2011

Aceito para publicação em 27 de junho de 2011

 

Endereço para correspondência

Dr. Luis Alberto Batista Peres

Rua São Paulo, 769/901 – Centro

85801-020 Cascavel, PR.

E-mail: peres@certto.com.br

 

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RELATO DE CASO

Amiloidose1.jpg

Figura 1 – Histologia renal.

Aumento 400 X. Coloração hematoxilina-eosina: Glomérulo renal revela depósito de substância amilóide (setas).

Amiloidose2.jpg

Figura 2 – Histologia renal.

Aumento 400 X. Coloração hematoxilina-eosina: Interstício revela depósito de substância amiloide (setas).


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