<< Voltar
12_Infarto_RBCM_v10_n1

Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2012 jan-fev;10(1):65-8

Infarto muscular diabético. Relato de caso*

 

Diabetic muscle infarction. Case report

 

Thiago Giuriato Fernandes1, Nayara Campos Gomes1, Luiz Clóvis Bittencourt Guimarães2, Luiz Clóvis Parente Soares2, Almir Salomão Filho3, Marcelo Montebello Lemos2

 

*Recebido da Faculdade de Medicina de Campos e Hospital Escola Álvaro Alvim. Campos dos Goytacazes, RJ.

RESUMO

 

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Diabetes mellitus (DM) é uma das doenças mais prevalentes e o conhecimento das suas complicações vasculares garante melhor tratamento aos pacientes. O infarto muscular diabético (IMD) é uma situação pouco reconhecida, que deve entrar no diagnóstico diferencial das lesões tumefactas, dolorosas, restritas a um grupamento muscular. A presença de outras lesões de órgãos-alvo indica maior risco de desenvolver o IMD. O objetivo deste estudo foi apresentar um caso incomum e, deste modo, contribuir para o maior reconhecimento e diagnóstico dessa doença.

RELATO DO CASO: Paciente do sexo feminino, 24 anos, apresentando dor e aumento do volume da coxa e joelho esquerdos, iniciados há 15 dias, com piora gradual no período. Os exames de sangue evidenciaram aumento da creatinoquinase para níveis de 601U/L (valor de referência: 26 - 174 U/L) e velocidade de hemossedimentação igual a 126 mm/1ª hora. A ultrassonografia e a ressonância magnética foram sugestivas de um processo inflamatório muscular localizado. A biópsia confirmou o IMD. Tratada com repouso e analgésicos, com melhora completa. Duas recidivas subsequentes apontaram para possível efeito prejudicial do anticoncepcional oral. Feita a sua substituição, bem como otimização das medidas reológicas, sem mais recidivas.

CONCLUSÃO: O caso relatado representa o típico IMD, com lesão localizada, autolimitada, conforme previamente publicado. Uma possível associação do IMD com o uso de contraceptivo oral, bem como o beneficio do uso de dois fármacos antiplaquetários, em associação, foram observados no presente caso. O IMD deve ser considerado no diagnóstico diferencial das lesões musculares dolorosas, em pacientes diabéticos. O efeito dos contraceptivos orais no surgimento dessas complicações, bem como o benefício dos agentes antiplaquetários merece investigação adicional.

Descritores: Diabetes mellitus, Infarto muscular.

 

SUMMARY

 

BACKGROUND AND OBJECTIVES: Diabetes mellitus is one of the most frequent diseases and the awareness of its vascular complications promises a better treatment to the patients. Muscle diabetic infarction (MDI) is one of such situations, usually not recognized, which must be considered on differential diagnosis of edematous, painful lesions, restricted to muscle group. The presence of other target-organ lesions points toward a higher risk of developing MDI. The aims of the present study included the description of an unusual medical condition, thereby contributing to its recognition and diagnosis.

CASE REPORT: Female patient, 24 years-old, presenting with pain and edema in the left thigh and knee, started 15 days ago, with progressive worsening. Blood sample examination has shown increased creatinokinase levels of 601U/L (reference range: 26 – 174 U/L) and erythrocyte sedimentation rate of 126mm/h. Ultrasound and magnetic resonance suggested a localized inflammatory muscle process with areas of necrosis. Muscle biopsy has confirmed MDI. Management was based on bed resting and analgesia, with consequent improvement. Two recurrences in the sequence were possibly associated with oral contraceptive intake. No recurrence has been observed after the contraceptive withdrawal and association of antiplatelets agents.

CONCLUSION: The present case is typical once the lesion was restricted to the thighs, recurrent, self-limited, in accordance with data reported elsewhere. The possible association observed between MDI and contraceptive intake as well as the benefit of antiplatelets cannot be confirmed to date, but highlights the need of further observations. MDI should be considered on differential diagnosis of painful and swelling lesions in diabetic patients. The harm of oral contraceptives and the benefit of antiplatelets agents deserve future studies.

Keywords: Diabetes mellitus, Muscle infarction.

 

INTRODUÇÃO

 

O infarto muscular diabético (IMD), também chamado mionecrose asséptica, é uma complicação incomum da diabetes mellitus (DM) de longa evolução, sem controle glicêmico adequado, associado a outras complicações microvasculares, como nefropatia diabética, retinopatia e neuropatia periférica1,2. Poucos são os casos registrados no mundo, dessa entidade descrita desde 1965, embora a incidência de DM seja crescente, o que faz crer que sua ocorrência possa ser mais comum que o reportado, caracterizando o subdiagnóstico.

A prevalência é maior em mulheres com média de idade igual a 43 anos e DM de longa evolução2 e a apresentação típica se caracteriza por dor muscular aguda, associada à limitação funcional, com ou sem tumefação palpável, dolorosa, na topografia do músculo acometido, com extensão para os tecidos adjacentes e persistindo por dias a poucas semanas, seguida de melhora espontânea. Os músculos mais frequentemente afetados são o quadríceps, os vastos lateral e medial, podendo também afetar os músculos da panturrilha. Há acometimento bilateral em aproximadamente 50% dos casos1,3,4. Não há exame laboratorial específico, no entanto, a elevação da creatinoquinase (CPK) e velocidade de hemossedimentação (VHS) são dados que reforçam a hipótese diagnóstica frente ao quadro clínico sugestivo.

O diagnóstico é baseado nos aspectos clínicos descritos, somados aos achados radiológicos. A ressonância nuclear magnética (RNM) é o exame de escolha, podendo evidenciar alterações sugestivas de lesão muscular isquêmica, com aumento do volume do segmento afetado, perda parcial da gordura intermuscular, edema subcutâneo, além das imagens compatíveis com necrose5. A necessidade de confirmação histológica através da biópsia do músculo afetado é discutível quando o contexto clínico-radiológico é típico, podendo até mesmo atrasar a recuperação, devendo ser reservada para os casos com apresentação atípica ou que a evolução não siga um curso autolimitado.

O tratamento é feito com repouso, suporte analgésico e controle agressivo dos níveis glicêmicos6-8. Deambulação lenta e progressiva deve ser iniciada apenas após regressão do quadro inflamatório. Outras doenças que cursam com aumento localizado de um grupo muscular, associado à presença de características inflamatórias, devem ser consideradas como diagnóstico diferencial, tais como tumores, vasculites, trombose venosa profunda, abscesso de partes moles, piomiosites e necrotizante9.

O objetivo deste estudo foi familiarizar os clínicos a essa situação pouco diagnosticada no nosso meio.

 

RELATO DO CASO

 

Paciente do sexo feminino, 24 anos, internada no Serviço de Clínica Médica do Hospital Escola Álvaro Avim, com dor e aumento do volume da coxa e joelho esquerdos, iniciados há 15 dias, evoluindo com piora gradual no período. Diabética tipo 1 e hipertensa há nove anos, sendo a pressão arterial bem controlada com captopril. A glicemia era bastante lábil, mesmo em uso de insulina NPH. Usava ainda gabapentina e contraceptivo oral regularmente. A história familiar era positiva para diabetes e hipertensão arterial sistêmica. Ao exame admissional observou-se desidratação cutâneo-mucosa discreta e um aumento pronunciado do volume da coxa e joelho esquerdos, com calor, rubor e dor à mobilização passiva e ativa. A impressão diagnóstica inicial foi tratar-se de celulite associada à artrite séptica.

A avaliação ultrassonográfica evidenciou leve derrame articular e significativo edema de partes moles adjacentes, sugerindo acometimento extra-articular primário. Artrocentese diagnóstica foi realizada, e o efluente, cujo aspecto era límpido, foi compatível com transudato e a bacterioscopia, bem como a cultura, foram negativos. Os exames de sangue e urina evidenciaram: anemia moderada, aumento da CPK para níveis de 601U/L (valor de referência: 26 – 174 U/L); VHS igual a 126 mm/1ª hora e proteinúria igual a 2.900 mg/24h. Os níveis de ureia e creatinina eram normais.

A ultrassonografia da coxa esquerda revelou o músculo vasto medial espesso, hipoecóico e hipervascularizado, sugerindo miopatia inflamatória.

A RNM da coxa evidenciou extensas áreas de edema e impregnação de contraste, acometendo difusamente a musculatura de ambas as coxas; o quadríceps esquerdo e o músculo vasto medial direito apresentavam áreas não captantes de contraste de permeio, compatíveis com componente necrótico, decorrente de infartos musculares ou miosite (Figura 1). Também foi observada nos cortes axiais a presença de moderada quantidade de líquido no espaço aponeurótico e no tecido celular subcutâneo ao redor das coxas (Figura 2).

A biópsia muscular evidenciou musculatura esquelética com áreas de necrose, fibras musculares residuais com aspecto regenerativo, com presença de tecido fibroso imaturo, neovascularização e infiltrado inflamatório inespecífico, conclusão sugestiva de miopatia isquêmica relacionada à DM (Figura 3).

Orientado o repouso e feita a associação de analgésicos, houve melhora gradual, com resolução completa. Cinco semanas após a alta hospitalar, apresentou quadro bastante semelhante no membro contralateral, sendo tratada da mesma forma. Após uma nova recidiva cerca de 30 dias depois, também autolimitada, foram associados fármacos antiagregantes plaquetários (ácido acetilsalicílico e clopidogrel) e trocado o contraceptivo combinado por derivado da progesterona em monoterapia, não havendo mais recidivas durante o seguimento de um ano após o último episódio.

 

DISCUSSÃO

 

O caso relatado expressa as características típicas do IMD, que devem ser observadas nas situações em que o diagnóstico diferencial de tumefações dolorosas se impõe. A história de diabetes de longa evolução, associada a lesões de outros órgãos-alvo e o acometimento restrito a um grupamento muscular foram os achados mais relevantes, como já descrito por outros autores. A localização preferencial na coxa, com tendência à recorrência também estão de acordo com a maior parte dos casos reportados por outros grupos1,2,4,9.

O presente caso torna claro que uma boa anamnese aliada a um exame físico cuidadoso, é fundamental para direcionar a propedêutica médica. A elevação da CPK é um marcador importante, apontando para a origem muscular do problema, tornando outras circunstâncias que cursam com acometimento mioarticular menos prováveis.

A complementação por imagem através da RNM pode ser conclusiva, quando aliado à história e exame clínico sugestivo, dispensando, até mesmo, a biópsia muscular. Optou-se por confirmação histológica em razão da escassez de evidências contrárias ou favoráveis à sua realização1,3,5,6,9.

A possível associação do IMD com o uso de contraceptivo oral, bem como o beneficio do uso de dois fármacos antiplaquetários em associação, observados no presente caso, não foram descritos ate hoje e necessita estudos adicionais.

 

CONCLUSÃO

 

O desconhecimento sobre as características do IMD pode levar ao subdiagnóstico, tratamentos equivocados e aumento dos custos na investigação e manuseio desses pacientes. Especula-se que essa complicação seja mais comum que o relatado na literatura médica até a presente data, considerando a alta prevalência de outras complicações vasculares nesses pacientes, assim como a alta prevalência de diabetes na população.

O IMD deve ser considerado no diagnóstico diferencial de toda lesão muscular dolorosa, localizada, em pacientes diabéticos. O efeito prejudicial dos contraceptivos orais combinados no surgimento de tais complicações, bem como o benefício dos agentes antiagregantes plaquetários merecem investigação adicional futura, a fim de melhorar o tratamento e mesmo a prevenção de tal complicação.

 

REFERÊNCIAS

 

1. Araújo NB, Araujo Filho NC, Leal AB, et al. Muscle infarction: do you think when dealing with a diabetic patient? Arq Bras Endocrinol Metabol 2004;48(4):559-63.

2. Trujillo-Santos AJ. Diabetic muscle infarction: an underdiagnosed complication of long-standing diabetes. Diabetes Care 2003;26(1):211-5.

3. Jelinek JS, Murphey MD, Aboulafia AJ, et al. Muscle infarction in patients with diabetes mellitus: MR imaging findings. Radiology 1999;211(1):241-7.

4. Pereira FO, Medeiros YS. Painful syndromes in diabetic patients due to skeletal muscle-injuries. Arq Bras Endocrinol Metabol 2006;50(5):957-62.

5. Ly JQ, Yi EK, Beall DP. Diabetic muscle infarction. AJR Am J Roentgenol 2003;181(5):1216.

6. Chason DP, Fleckenstein JL, Burns DK, et al. Diabetic muscle infarction: radiologic evaluation. Skeletal Radiol 1996;25(2):127-32.

7. Grigoriadis E, Fam AG, Starok M, et al. Skeletal muscle infarction in diabetes mellitus. J Rheumatol 2000;27(4):1063-8.

8. Scully RE, Mark EJ, McNeely WF, et al. Case records of the Massachusetts General Hospital. Weekly clinicopathological exercises. Case 20-1997. A 74-year-old man with progressive cough, dyspnea, and pleural thickening. N Engl J Med 1997;336(26):1895-903.

9. Vázquez Pedreño LA, García Carrasco E, Ramírez Mingoranze FJ, et al. Muscle infarction in patients with diabetes mellitus. An Med Interna 2002;19(9):491-2.

1. Graduando da Faculdade de Medicina de Campos. Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil

2. Professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Campos. Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil

3. Professor de Radiologia da Faculdade de Medicina de Campos. Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil

 

Apresentado em 14 de março de 2011

Aceito para publicação em 29 de agosto de 2011

 

Autor para correspondência:

Dr. Marcelo Montebello Lemos

Avenida Nilo Peçanha 405 – Casa 16 - Parque Santo Amaro

28030-053 Campos dos Goytacazes, RJ.

Fone: (22) 2722-2307 – Fax: (22) 2723-1899 / (22)2733-2121

E-mail: lemosmm@gmail.com

 

© Sociedade Brasileira de Clínica Médica

RELATO DE CASO

Infarto1a.jpg
Infarto1b.jpg

 

Figura 1 – Ressonância nuclear magnética – plano coronal

A. Sequência STIR no plano coronal evidenciando hiperssinal difuso na musculatura anterior, notadamente à esquerda, associado à edema do subcutâneo. B. Sequência T1 com supressão de gordura, pós-contraste, no plano coronal evidenciando realce de alguns grupamentos musculares após contraste e outras áreas hipocaptantes, sugerindo necrose

Infarto2a.jpg
Infarto2b.jpg

 

Figura 2 – Ressonância nuclear magnética – plano axial

A/B. Ambos os cortes evidenciam sequência T1 com supressão de gordura, pós-contraste, no plano axial, mostrando realce de alguns grupamentos musculares à esquerda e outras áreas hipocaptantes, sugerindo necrose

Infarto3.jpg

Figura 3 – Histopatologia da biópsia muscular

A) HE, 400x. Fibras musculares esqueléticas necróticas, sendo possível visualizar estriações transversais.

B) HE, 400x. Fibras musculares esqueléticas em corte transversal e aspecto regenerativo, permeadas por tecido conjuntivo jovem.

C) HE, 400x. Fibras musculares esqueléticas necróticas, algumas com núcleos visíveis.


<< Voltar